A Terra pode guardar, em suas profundezas, os restos de outro mundo. Um estudo publicado na revista científica Nature revela evidências de que fragmentos de um antigo planeta — batizado de Theia — permanecem presos no manto terrestre desde uma colisão cósmica ocorrida há 4,5 bilhões de anos, evento que também teria dado origem à Lua. A descoberta, feita por uma equipe internacional de geofísicos, reacende debates sobre a formação do sistema solar e sobre o próprio nascimento do nosso planeta.
Um planeta dentro do planeta
Pesquisadores do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), da Universidade Estadual do Arizona, do Observatório Astronômico de Xangai e da Nasa mapearam estruturas gigantescas a cerca de 2.900 quilômetros de profundidade. Essas regiões subterrâneas, conhecidas como Grandes Províncias de Baixa Velocidade de Cisalhamento (LLSVPs), têm o tamanho aproximado de dois continentes e são entre 2% e 3,5% mais densas do que o restante do manto terrestre.
As anomalias foram detectadas através da análise de ondas sísmicas — vibrações que se propagam pela Terra durante terremotos. Ao cruzar materiais de densidades diferentes, as ondas desaceleram, revelando áreas mais densas e antigas, que agora os cientistas acreditam ser os restos fossilizados de Theia, o planeta que um dia colidiu com a Terra primitiva.
“É um resultado empolgante e provocativo”, afirmou o cientista planetário Robin Canup, do Southwest Research Institute (EUA), que não participou da pesquisa. “Isso pode nos ajudar a entender melhor a origem da Lua e o impacto que moldou o nosso planeta.”
A colisão que criou a Lua
O impacto entre a jovem Terra e Theia foi tão violento que lançou enormes quantidades de material fundido para o espaço. Esses detritos se aglutinaram ao longo do tempo, formando a Lua — uma teoria conhecida como Hipótese do Impacto Gigante.
Por décadas, cientistas se perguntaram o que teria acontecido com o corpo de Theia após o choque. O novo estudo sugere que parte de seu material foi absorvida pela Terra e afundou lentamente até o manto inferior, permanecendo isolada desde então.
“Os fragmentos são como fósseis planetários, preservados sob camadas de rocha e pressão extrema”, explica o geofísico Qian Yuan, principal autor da pesquisa. “É possível que o interior da Terra guarde a assinatura química de um planeta desaparecido.”
O interior da Terra como museu cósmico
O manto terrestre, responsável por mais de 80% do volume do planeta, é composto de rocha sólida em constante movimento. Ele separa a crosta (onde vivemos) do núcleo metálico central. Dentro desse ambiente hostil — com temperaturas que ultrapassam 3.000 °C —, as “bolhas” de Theia permanecem intactas há bilhões de anos, como relíquias geológicas de um passado violento.
As duas principais regiões onde esses fragmentos estão concentrados ficam sob o Oceano Pacífico e sob o continente africano. Desde a década de 1980, elas intrigam os geofísicos, mas sua origem permanecia misteriosa. Agora, a hipótese de que são pedaços de um planeta alienígena dá nova luz a essa investigação.
Nem todos estão convencidos
Apesar do entusiasmo, a hipótese ainda enfrenta ceticismo na comunidade científica.
A geofísica Miki Nakajima, da Universidade de Rochester (EUA), lembra que os modelos existentes ainda divergem quanto à quantidade de mistura entre o material de Theia e o da Terra após o impacto.
“Não acho que o material tenha permanecido completamente separado”, avalia. “Mas é possível que pequenas porções tenham resistido à fusão total e se mantido preservadas.”
Outros pesquisadores, como Maxim Ballmer, da University College London, argumentam que as LLSVPs podem ter se formado de forma natural, à medida que o manto da Terra se resfriava e se diferenciava em regiões mais e menos densas — sem necessidade de um planeta externo.
Implicações para a ciência planetária
Se confirmada, a descoberta muda radicalmente o entendimento sobre como os planetas se formam e evoluem. Ela também sugere que outros corpos rochosos, como Marte e Vênus, podem esconder vestígios de antigos impactos cósmicos em seus interiores.
A equipe de Yuan planeja agora comparar a assinatura química das rochas basálticas oriundas do manto profundo com as amostras lunares coletadas nas missões Apollo. Se ambos apresentarem composição idêntica, a hipótese de que a Terra abriga os restos de Theia ganhará força definitiva.
O passado que pulsa sob nossos pés
Em escala cósmica, a descoberta mostra que a Terra não é um corpo isolado, mas o resultado de um encontro violento entre dois mundos primordiais. Os fragmentos de Theia — tão antigos quanto o próprio sistema solar — continuam ali, invisíveis, mas fundamentais para nossa existência.
Cada montanha, cada oceano e até a Lua no céu noturno carregam a memória desse impacto colossal.
Sob nossos pés, dois continentes inteiros de outro planeta dormem há bilhões de anos, guardando o segredo da origem da Terra — e, talvez, de toda a vida que dela nasceu.